A Colheita
fiction ussr politicsEditora: Editorial Vitória
Páginas: 550
Idioma: português
ISBN-13: ?
ISBN-10: ?
Terminei essa leitura pela manhã. Começo a escrever isso à noite. Procrastinei porque não queria que as linhas que garatujo aqui acabassem desestimulando alguém a buscar esse livro. Gostei por tantos motivos diferentes que acho que não vou fazê-lo justiça, mas vou tentar.
Essa é uma história sobre um kolkhoz e vários de seus trabalhadores no período pós-Grande Guerra Patriótica. Além dos dramas pessoais na vida de cada um, acompanhamos as transformações no próprio kolkhoz: ele sai de retardatário em produção no distrito para uma posição de destaque no final do livro.
Vários fatores contribuem para essa melhora: o trabalho de organização feito pelo presidente do kolkhoz, o envolvimento cada vez mais assíduo da comunidade no trabalho coletivo, a eletrificação e mecanização do trabalho agrícola, os conhecimentos da ciência agronômica sendo aplicados até nas regiões mais remotas.
Essa é uma das coisas mais interessantes desse livro: temos um vislumbre de como se organiza o trabalho rural - algo que para quem sempre morou em ambiente urbano pode parecer simples, mas definitivamente não é - numa comunidade que tem uma sociabilidade e organização da produção muito distinta da nossa - é um kolkhoz, com muitos espaços coletivos, não é um fazendão privado.
Até aqui, acho que fiz o livro parecer informativo, talvez como um livro didático, e, apesar de aprender ser um efeito colateral interessante, não é para isso que se lê um livro de ficção. Acho que para mostrar que é um puta
baita romance também, basta citar como o 1º capítulo começa: um soldado ferido gravemente na cabeça fica 2 anos em tratamento. Até seu regimento o dava como morto. Quando ele finalmente restabelece as forças e volta para casa, tem aquele momento de felicidade ao reencontrar as filhas, a esposa e…
Dá de cara com um outro homem dormindo em sua cama. O período de ausência do soldado foi tão longo que sua devotada esposa acabou se envolvendo romanticamente com outra pessoa. Esse é apenas o início da história de Vassili, que assumirá a presidência do kolkhoz. Acompanhamos muitas outras personagens daquela comunidade.
Temos Valentina, agrônoma, que vive se deslocando por conta do trabalho no distrito. Andréi, seu marido, que é secretário do comitê distrital do partido. O casamento deles é afetado por ambos viverem vida nômade. Temos vários tratoristas e condutores de máquinas agrícolas, orgulhosos do seu trabalho. Temos Buiánov, eletricista enviado para ajudar nos esforços de eletrificação do kolkhoz, que a princípio não gosta de ser mandado para uma comunidade tão isolada. Temos os komsomóis, envolvidos com as inovações técnico-científicas, personificados principalmente na figura de Aliocha e sua empolgação pelo trabalho coletivo. Temos os mais indolentes, que se preocupam mais com resolver o seu lado e negligenciam o trabalho kolkhoziano.
É grande a variedade de personalidades interagindo ali, citei só algumas. Anote o nome num caderno quando as personagens aparecerem pela primeira vez que você ficará bem1. Rapidamente se entende quem é quem. Não é um livro difícil de acompanhar.
O que eu gostaria de deixar claro com as linhas acima é que não é só um livro de propaganda ou educativo sobre o trabalho nas fazendas coletivas na URSS. É um bom romance. Eu nunca imaginei que leria sobre uma corrida para colher centeio antes de uma tempestade com a mesma empolgação que leria sobre uma batalha épica. Aconteceu nessa história.
Vou citar mais algumas características que me surpreenderam, especialmente por ser um livro de 1954:
- Quase todo personagem é bem mais maduro, racional e centrado do que eu esperava. Em vários momentos pensei “ok, agora é a hora em que essas pessoas se agridem” e elas resolviam de forma mais realista. Vassili, por exemplo, ao encontrar a esposa com outro não “sai no braço” com o homem. Tira ele de sua casa, mas não sem antes arrumar provisões para ele. É uma cena carregada de drama, mas não termina como terminaria numa novela das 8 ou filme de Hollywood.
- As mulheres são bastante importantes e participativas. Com frequência se impõem. Consideram divórcio, trabalho não doméstico etc. Uma personagem, mais idosa e conservadora, condena outra, mais jovem, pela forma com que se veste. Isso incomoda um personagem masculino. Lembre-se: é um livro de 1954.
- No geral, a educação e a leitura eram bem valorizadas naquela comunidade. Personagens leem uns para os outros, alguns se orgulham da biblioteca pessoal que vão montando.
- Os personagens fazem autocrítica. Ao invés de protagonistas obstinados, teimosos, que conseguem dobrar o mundo à sua vontade e finalmente “vencer” tudo e todos, temos protagonistas que em vários momentos reavaliam suas atitudes e opiniões.
Ah, mas isso aí é propaganda comunista!
Sim e honestamente? Eu não poderia me importar menos. Li e gostei muito.
Até peças de recrutamento podem ser entretenimento. Isso não implica em não saber que são peças de recrutamento.
Dá para apreciar obras e desprezar as mensagens nelas.
Uma das coisas fascinantes acerca da Arte é a possibilidade de admirarmos uma obra por seus elementos técnicos/criativos/narrativos/etc e, ao mesmo tempo, desprezarmos profundamente a mensagem que estes transmitem. No extremo desta dicotomia, há clássicos como O Nascimento de uma Nação e O Triunfo da Vontade, claro, mas, de certo modo, inúmeros outros filmes usam a linguagem de forma intrigante para levar o espectador a se identificar com personagens e situações que normalmente desprezaria (pensem em Scarface, A Queda, Taxi Driver e tantos outros). Assim, não é espantoso que este Sniper Americano tenha me agradado tanto embora, política e moralmente corrompido, traga como protagonista um psicopata que insiste em tratar como herói. - Pablo Villaça2
Dito isso, já que esse é meu site, quero deixar claro que acho que se não superarmos rapidamente o capitalismo, estamos fodidos. Como espécie mesmo. O sistema de produção vigente representa uma ameaça à nossa sobrevivência. Tem potencial para nos extinguir. Você não leu as opiniões de uma “pessoa neutra”. Neutro é shampoo. Eu tendo a me identificar com histórias como as de “A Colheita”.
Porém, honestamente acho que é uma história legal. Dá para você gostar mesmo que não esteja ideologicamente alinhado com a autora.
Numa monografia, é citado o cuidado do organizador da coleção em que o livro foi publicado, o escritor Jorge Amado, de não deixar que os títulos fossem só doutrinários:
Tendo assumido a direção da editora do Partido Comunista Brasileiro um intelectual de alta qualidade, Alberto Passos Guimarães, e estando desejoso de ampliar a editora, reduzida até então a publicações teóricas e doutrinárias, convidou-me a organizar uma coleção de romances que, sendo de conteúdo social, não fosse obrigatoriamente limitados pela ideologia. Isso foi feito.
Então, se não quiser acreditar em mim, acredite no Jorge Amado.
A capa que aparece acima não é a capa da edição que eu li. A que eu li só trazia o título e nome da autora na lombada. Não tinha nada escrito na capa.
Busquei, sem sucesso, esse livro em português na Estante Virtual, no Mercado Livre, na Amazon, no LibGen e em grupos no Telegram. Achei na Biblioteca Municipal de Petrópolis. 😄
Essa leitura me deu a sensação de estar em contato com uma raridade e serviu para eu refazer meu cadastro na biblioteca para empréstimo. Foi legal por esse aspecto também. 😊

Frontispício da edição de "A Colheita" que li. Foi bom retomar o hábito de pegar livros na biblioteca com um livro de 1954 difícil de encontrar. Dá a sensação de que há muitos tesouros a serem descobertos por lá ainda.
-
É fácil se espantar com a 1ª aparição de nomes como Ksénofontovna, Matvéievitch e Ossipovitch. 😅 ↩︎
-
1º parágrafo da crítica ao filme “Sniper Americano”. ↩︎